domingo, 4 de julho de 2010

Um relato a parte, meu.




A dinâmica da vida se estabelece de uma forma singular inserida em um contexto veloz, cada vez mais homogêneo e global. A homogeneidade de um estilo de vida formulada em um determinado tempo e espaço se espalha de maneira pandêmica entre os habitantes do planeta. A todo segundo há mortes e novas vidas.
Seria isso que se passava na cabeça daquele senhor que fiquei a observar por alguns minutos?
Quando acordava cedinho para pegar meu caminho em direção a aula, seu Eliseu já estava lá prostrado. Chegava junto com o sol, e com ele ia embora. Eu morava numa pequena ruela, num pequeno apartamento, onde cozinha, quarto e sala não se separavam. E assim, toda manhã, tarde e noite, me deparava com o tal senhor. Sempre agachado, sentado sobre o próprio calcanhar, cunhava seu próprio cigarro, embaixo de arbustos de sarjeta. Desta forma ele passava o dia, com o cenho sempre sereno e abstrato. Obviamente trocava a perna de apoio e produzia mais palheiros como um artesão.
O moço da padaria lhe levava o café, e a moça do restaurante a marmita. E eu me perguntando o que lhe passava a mente, pois todo o contexto que me via inserido, e com o objetivo profundamente incumbido de realizar alguma mudança significativa, passava alheio aos olhos daquela criatura que assistia a vida outra como que um filme tornado real.
Será, penso eu, que seu Eliseu havia se livrado do fardo da modernidade, ou o fardo para ele pesava tanto, que mal conseguia andar?
Não era fácil estabelecer um diálogo duradouro com ele. O motivo eu não sei, mas aos poucos tentei construir minha interpretação sobre o passado do velho. Seus olhos parcialmente cegos contavam o trabalho árduo de outrora: numa plataforma marinha de extração de petróleo, como fundidor, sempre o maçarico a mão. A mulher por algum motivo o largara. E agora, morava só, numa viela perpendicular a minha rua, numa estradinha de terra, a casinha de madeira cercada pela vida vegetal. O cheiro, sempre de terra molhada.
Numa manhã de neblina e garoa, que nascera mais calma que as outras, as formigas lhe caminhavam por dentro das narinas do corpo já gelado. Seu Eliseu viveu até próximo dos sessenta anos de idade. Faleceu sereno como sempre, deitado na cama que lhe pertencia. O motivo da morte eu também não sei, morreu dormindo.
Eu só sei que por dois anos a imagem desta pessoa fez parte não apenas do meu cotidiano, mas de várias outras pessoas apressadas que sempre estavam indo e vindo, enquanto Eliseu permanecia inerte, imerso em pensamentos. Bêbado? De maneira alguma! Eu mesmo já havia tentado lhe pagar uma dose d’água ardente, recusou dizendo que não podia “por causa da injeção dos domingos”.
Certo dia, enquanto o velho ainda era vivo, me lembrei do homem da multidão, de Baudelaire e Poe. Mas este, a curiosidade não ouriçava a ponto de fazê-lo seguir alguém. Os outros é que o seguiam com os olhos, como que tentando completar a paisagem passageira da rua. Por dois anos, caminhando diariamente entre os seres apressados pelo capital, seres estes que, por algum motivo achavam um esforço dizer um simples “bom dia”, um aceno, um olhar. Era só levantar a palma da mão em direção a seu Eliseu para ouvir um cumprimento sincero, de alguém que parece que estava ali para isso. Hoje não mais...
E eu, fiquei sem saber seu grande segredo, sua calmaria, se já havia compreendido o tudo, ou o nada. Voltei ao meu objetivo, ao meu contexto. Ainda não encontrei a saída, mas nunca deixei de procurar.