sexta-feira, 20 de abril de 2012



"Qual tratado que os brancos respeitaram e os peles-vermelhas quebraram? Nenhum.
Que tratados os brancos fizeram conosco e eles respeitaram? Nenhum.
Quando eu era menino, os sioux eram os donos do mundo; o sol nascia e se punha em suas terras; enviavam dez mil homens às batalhas. Onde estão os guerreiros hoje? Quem os escravizou? Onde estão nossas terras? Quem as possui? Qual é o homem branco que pode dizer que eu jamais roubei sua terra ou um centavo sequer de seu dinheiro? No entanto, eles me chama de ladrão. Que mulher branca, ainda que desprotegida, jamais foi escravizada ou desrespeitada por mim? E, no entanto, eles dizem que sou um índio mau. Que homem branco jamais me viu embriagado? Quem jamais retornou a mim, faminto ou mal-alimentado? Quem jamais me viu batendo em minhas esposas ou abusando de meus filhos? Que lei eu desrespeitei? É errado que eu ame aos meus? Sou desgraçado porque minha pele é vermelha? Porque sou sioux, porque nasci onde viveu meu pai, porque morreria por meu povo e meu país?"




Chefe Boi Sentado, dos sioux.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

A revelação de Heródoto


Existe uma lenda muito antiga que devido à situação em que o mundo se encontra hoje, decidi contar. Esta lenda encontra-se num relato muito particular escrito em um dos diários de Heródoto, o grego conhecido como pai da História, e conta uma realidade extremamente singular sobre a lua.

O relato está nas últimas páginas do último diário, do dia 27 de setembro, de 420 a.C. Apesar de ter o documento em mãos, com fins de resumo e simplificação, contarei uma parte da história com as minhas próprias palavras...

Segundo a escritura, neste dia, Heródoto decidira, após acordar de um sonho aflito e misterioso, cavalgar de Atenas até o oráculo de Delfos. A localização fica a um dia de viagem a cavalo. E assim o fez. Saiu de manhã e chegou às primeiras horas da madrugada.

Ao chegar, estranhou. Na entrada não havia ninguém, assim como também não havia na via sacra que se segue subindo a colina, antes de se chegar ao templo do oráculo {o oráculo de Delfos que se encontra dentro do templo de Apolo está empoleirado numa colina e, antes de alcançá-lo existe uma trilha a ser seguida. Nesta trila ou, via sacra, os visitantes do templo deixavam suas ofertas e recompensas pela sabedoria que receberiam}. Nevava, mas não tinha vento. A própria atmosfera se fazia gelada. Heródoto continuou subindo a cavalo até o portal do santuário. A noite estava extremamente clara, pois a lua se fazia mais cheia do que nunca. Silêncio. O homem desceu do cavalo e abriu vagarosamente as portas do templo. Ao entrar, tudo se fez escuridão. Assustado, saiu novamente e encontrou a claridade proferida da lua. O mistério é que agora a luz vinha de outra direção e quase o cegava. Heródoto se deparou com uma figura que não sabia se podia julgar como um humano. Talvez a imagem, por meios de descrição, se aproxime da nossa imaginação da maneira em que hoje atribuímos aos arcanjos. A luz incidia em seus olhos e vinham das asas abertas. Abertas como as águias o fazem durante o banho de sol matinal. As asas eram do branco mais puro que uma perola jamais poderá pensar encontrar em sua constituição, e se encontravam enfiadas firmemente no corpo nu daquela figura andrógena, pálida e fisicamente perfeita. Heródoto, num gesto instintivo levou as mãos aos olhos e os fechou como forma de proteção, e foi abrindo novamente aos poucos. Sentiu vertigem. A figura, de costas, movimentou suavemente as suas asas, de maneira em que as pontas se encontrassem formando uma esfera. Foi então que o homem que buscava o oráculo se viu completamente pasmo. A própria lua cheia encontrava-se prostrada diante dele e agora podia ver até as manchas sombrias mediante ao branco reluzente. Procurou desesperadamente o corpo celeste nos céus entre as estrelas, não encontrou, pois estava era no solo, diante dele e formada pela figura peculiar. O ser então se movimentou novamente abrindo seus membros alados, deformando o que antes era conhecida como lua e profetizou palavras inteligíveis. Sua voz parecia a de mil pessoas falando ao mesmo tempo, entre homens, mulheres, idosos e crianças, criando um som gutural.

- “Tu serás lembrado durante milênios como o primeiro contador de histórias. Mas tuas histórias estarão embasadas em relatos factuais e a humanidade acreditará no que ler e ouvir de ti”. – dizia calmamente o ser a Heródoto. – “Lá de cima, controlarei as forças naturais de tua Terra, humano. Mas quando digo tua, digo a tua raça e também as outras, assim como as pedras que sustentam este monumento atrás de ti, assim como esta rosa que agora pisas com tua sandália suja de medo. Controlarei o movimento dos oceanos e das marés. Darei claridade à escuridão da noite. Reinarei a noite em tua casa. Casa esta que me refiro a tudo que encontras a tua volta”. – aumentando o tom da voz, continuou. – “Serei essencialmente vital a tua espécie. Em troca guardo que não tentem contra as forças que estão acima de tua humilde e breve existência, ou voarei daqui para bem longe, onde outros darão razão ao meu leito. Não queria dominar aquilo que não foi feito para ser dominado. Respeite sabiamente o que está a tua volta, e serás respeitado”. – diminuindo outra vez o tom da voz, terminou. – “Vá agora, criatura, e guarde este relato fielmente. Que a tua espécie só saiba da minha verdadeira natureza quando não mais notarem a minha presença”. – fez-se então escuridão total. O contador de histórias se sentiu infinitamente insignificante, cambaleou turvamente até encontrar suporte num dos pilares do templo.

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Segue abaixo o trecho final das anotações de Heródoto, agora uma citação literal:

“A espécie humana obteve uma dádiva fenomenal que, creio eu, outras espécies não obtiveram, mas não ouso afirmar de fato. Esta dádiva é a de poder refletir sobre os nossos atos, ou seja, se assim desejarmos, não cometemos os mesmo erro duas vezes. Podemos: pensar, lembrar, relembrar e filosofar. A meu ver, o ser que me deparei ontem, acredita que podemos como espécie integrante deste mundo, buscar um equilíbrio permanente com os outros elementos. Mas teme, justamente por termos recebido este dom. Dom este que não sei de onde veio: se roubamos, ou se ganhamos por merecer. Por isso, imagino que ela não quer que sua verdadeira face seja revelada antes da hora. Talvez tema que tentaremos matá-la, como fazemos com os outros seres vivos e assim causando nossa própria extinção. De todo modo, seu recado ficará registrado e será guardado às gerações vindouras”.

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Nunca mais encontraram outras anotações deste homem depois desta data. Dizem que no dia seguinte, foi deitar-se devido a uma forte dor de cabeça, mas nunca mais acordou. Conto esta lenda para quem quiser ler ou ouvir, mas não acredito que será útil e tenho um motivo para pensar assim. Particularmente, acho que a dádiva que Heródoto cita, nós acabamos perdendo com o tempo, se não perdendo, modificamo-la, pois temos cometidos os mesmos erros por muito tempo a ponto de hoje em dia se falar exaustivamente em fim da raça humana. Este relato não vai ser útil enquanto não aprendermos a dar verdadeiro valor ao passado.

Enfim, este documento antigo eu encontrei enfiado na terra da minha roseira enquanto a adubava. Estava escrito em grego num papiro antigo, mas dei meu jeito para traduzi-lo. Agora eu vou me deitar, minha cabeça lateja de dor.

sábado, 4 de setembro de 2010

Allegro Ma Nem Tanto

Marcus era definitivamente um homem metódico. Tinha lá seus rituais diários, ou como costumam confundir por aí, tinha suas manias. Mas ele mesmo sempre dizia “e quem não tem? Quem não entra sempre primeiro com o mesmo lado do corpo no chuveiro? Quem não começa escovando os dentes sempre pelo mesmo lado da boca? Quem por Deus muda o tanto de colheres de açúcar que coloca no café?”. Usava sempre tons de verde escuro em suas vestimentas e uma bengala de madeira, pois a perna esquerda já não tinha mais jeito. Nas ruas já era tratado como “senhor”. Inclusive na praça, era bem conhecido. O senhor Marcus era simplesmente o melhor enxadrista da cidade. Uma de suas manias, odiada pelo povo era a de jogar a bituca do cigarro na escada de entrada da igreja enquanto caminhava às mesas de xadrez.
Marcus era, convenhamos muito peculiar. Casado com Madalena preferia estourar seus miolos na parede do escritório a traí-la. Para alguns, o homem era motivo de orgulho, para outros de escárnio. Até as crianças conheciam a fama do major Marcus. Participara da leva brasileira durante a Segunda Guerra Total. Lutou com sucesso ao lado dos estadunidenses contra os italianos do eixo. Enquanto algumas crianças batiam continência quando ele passava, outras tinham pesadelos horríveis ao ouvir suas gargalhadas medonhas nas madrugadas que ficava na praça. Ria tanto ao lembrar-se de como o inverno branco assombrou Hitler ao redor de Moscou, que dava até medo.
A figura era mais comentada mesmo por suas atitudes singulares, e quem mais conhecia essas era a senhora Madalena. A preocupação do tempo e da memória deixara suas marcas irreparáveis nas rugas, mas o sorriso afável as ofuscava, e tricotava como ninguém, nem é preciso dizer da magia que fazia numa cozinha com uma panela velha. Madalena trabalhava na copa como um alquimista no auge de sua sabedoria, a perfeita combinação dos temperos e ervas traziam gatos e aves para suas janelas, sem contar os olhos gordos dos vizinhos. A senhora queria sanar algumas manias do marido, mas compreendia que naquela idade, nem a sua mágica conseguiria o tal êxito. Apesar dos pesares, o casal vivia feliz e tinham absoluta certeza de que morreriam juntos.
Marcus era fissurado por consertar objetos, dos mais diversos. Quanto mais antiga fosse a peça mais se empolgava. No entanto, teimava em não arrumar a bendita da agulha da vitrola que se fazia torta, suja, decadente, “na vitrola não se toca!”, por incrível que pareça, nem mesmo para mudar o disco. Jazia no aparelho um vinil todo empoeirado de Beethoven, a quinta sinfonia completa. Marcus gostava dos estalos que só uma vitrola faz durante a música, dizia que fazia da música mais humana e era disso que o mundo precisava.
O ritual mais singular do homem era praticamente uma sinfonia que ele regia com exímia maestria. Gostava de dormir com a barba feita. E assim se fazia: ao relógio da parede marcar nove horas da noite, Marcus conferia o horário no seu relógio de bolso - relíquia preciosa de guerra. E então o espetáculo começava. Dobrava cuidadosamente as mangas da camiseta até pouco acima dos cotovelos, ia até o armário, abria com delicadeza o whisky trinta anos escocês, cheirava a garrafa, e preparava uma dose sem gelo. A caminho do banheiro colocava Beethoven para lhe agradar os ouvidos. No banheiro, com o copo de whisky ao lado da pia, acendia um cigarro, dava uma tragada e o deitava no cinzeiro. Passava o creme de barbear pelo rosto. Abria uma caixa de madeira onde guardava sua navalha de prata. Sempre polia antes de usá-la. Era tão afiada que cortava até pensamento. Conforme a música Marcus fazia sua própria dança, raspava com perfeição o rosto, entre goles de bebida e tragos no cigarro, em plena harmonia. Não se barbeava sem Ludwig Van já havia décadas. E ai de quem o perturbasse no precioso momento. E havia quem o fazia, Madalena. “Já disse para parar de fumar está droga do inferno!”; “Dá-me um tempo, mulher! Não tens idéia das coisas que já vi nesta vida!”- cuspia após cada ímpeto, ímpeto este que a romântica quinta sinfonia o levava a flor da pele. Era sempre o mesmo diálogo. Sua esposa reconhecia tamanha diferença que o homem havia voltado do velho mundo depois do grande conflito. “Tu morrerás deste jeito! É isto que desejas?” A cena era digna da imagem, Marcus movia a navalha com a habilidade de um regente em meio à neblina densa e espessa que transmutava o banheiro de mármore, uma visão do inferno, alguns diriam. Parecia buscar certo tipo de alívio naquele momento, um tempo só para ele.
E foi assim então que, num dia desses, Madalena chegara em casa tarde da noite, pois aos sábados preparava o jantar para os franciscanos na abadia. A quinta sinfonia trovejava em alto volume o gélido “C minor” (Dó menor). Ao entrar chamava pelo seu homem que não respondia. Foi então que sentiu o calafrio dançar por toda a espinha, a maldita agulha da vitrola havia finalmente mostrado falha, e a melodia repetia incansavelmente, o mesmo segundo... Madalena já profetizara. A cena não poderia ser outra. No banheiro jazia a fumaça, o cigarro terminado, a dose de whisky pela metade, e o mármore sangrado em tons de vermelho negro, a meia luz lembrava a cor do vinho. Marcus encontrava-se prostrado no chão ao lado da navalha. As estigmas em sua garganta personificavam a irreparável repetição do disco riscado pela agulha quebrada. Madalena, apesar dos olhos marejados, o tratou com frieza, como se ainda estivesse vivo. Lavou, limpou, e terminou de fazer a barba do cadáver, pois tinha certeza de que era aquilo que o homem desejaria. Levou o corpo até a sala onde havia uma lareira a frente de duas confortáveis poltronas, uma para cada um, e o colocou sentado de frente. O fogo quase extinto, ela atiçou com o resto de whisky que sobrara no copo, o que trouxe vigor as chamas. O maço de cigarros ela jogou ao fogo com vontade. Em seguida abriu a bolsa e tirou uma bíblia de dentro. Uma página estava marcada, o marcador era uma agulha de vitrola, perfeitamente nova, que guardara durantes anos, com a esperança de que um dia o velho desejasse trocá-la. Madalena arrumou então a vitrola e colocou o bendito do vinil para tocar novamente. Sentou-se ao lado do seu homem. Olhou com pesar aquele livro que guardava as sagradas escrituras, e com convicção entregou-o às chamas e ficou observando o papel ser comido rapidamente pelo fogo, enquanto segurava firmemente as mãos geladas do marido.
Passadas algumas semanas a polícia decidira entrar na casa, devido o número de reclamações do mau cheiro pelos vizinhos. As autoridades encontraram o casal já em estado de decomposição, sentados juntos, lado a lado, cobertos por cinzas. Dos dois oficiais prostrados de frente aos moribundos, um bateu continência a Marcus, o outro fez o sinal da cruz e cerrou os olhos; em seguida, o mais velho deles escondeu sorrateiramente em sua maleta, o vinil de Beethoven.

domingo, 4 de julho de 2010

Um relato a parte, meu.




A dinâmica da vida se estabelece de uma forma singular inserida em um contexto veloz, cada vez mais homogêneo e global. A homogeneidade de um estilo de vida formulada em um determinado tempo e espaço se espalha de maneira pandêmica entre os habitantes do planeta. A todo segundo há mortes e novas vidas.
Seria isso que se passava na cabeça daquele senhor que fiquei a observar por alguns minutos?
Quando acordava cedinho para pegar meu caminho em direção a aula, seu Eliseu já estava lá prostrado. Chegava junto com o sol, e com ele ia embora. Eu morava numa pequena ruela, num pequeno apartamento, onde cozinha, quarto e sala não se separavam. E assim, toda manhã, tarde e noite, me deparava com o tal senhor. Sempre agachado, sentado sobre o próprio calcanhar, cunhava seu próprio cigarro, embaixo de arbustos de sarjeta. Desta forma ele passava o dia, com o cenho sempre sereno e abstrato. Obviamente trocava a perna de apoio e produzia mais palheiros como um artesão.
O moço da padaria lhe levava o café, e a moça do restaurante a marmita. E eu me perguntando o que lhe passava a mente, pois todo o contexto que me via inserido, e com o objetivo profundamente incumbido de realizar alguma mudança significativa, passava alheio aos olhos daquela criatura que assistia a vida outra como que um filme tornado real.
Será, penso eu, que seu Eliseu havia se livrado do fardo da modernidade, ou o fardo para ele pesava tanto, que mal conseguia andar?
Não era fácil estabelecer um diálogo duradouro com ele. O motivo eu não sei, mas aos poucos tentei construir minha interpretação sobre o passado do velho. Seus olhos parcialmente cegos contavam o trabalho árduo de outrora: numa plataforma marinha de extração de petróleo, como fundidor, sempre o maçarico a mão. A mulher por algum motivo o largara. E agora, morava só, numa viela perpendicular a minha rua, numa estradinha de terra, a casinha de madeira cercada pela vida vegetal. O cheiro, sempre de terra molhada.
Numa manhã de neblina e garoa, que nascera mais calma que as outras, as formigas lhe caminhavam por dentro das narinas do corpo já gelado. Seu Eliseu viveu até próximo dos sessenta anos de idade. Faleceu sereno como sempre, deitado na cama que lhe pertencia. O motivo da morte eu também não sei, morreu dormindo.
Eu só sei que por dois anos a imagem desta pessoa fez parte não apenas do meu cotidiano, mas de várias outras pessoas apressadas que sempre estavam indo e vindo, enquanto Eliseu permanecia inerte, imerso em pensamentos. Bêbado? De maneira alguma! Eu mesmo já havia tentado lhe pagar uma dose d’água ardente, recusou dizendo que não podia “por causa da injeção dos domingos”.
Certo dia, enquanto o velho ainda era vivo, me lembrei do homem da multidão, de Baudelaire e Poe. Mas este, a curiosidade não ouriçava a ponto de fazê-lo seguir alguém. Os outros é que o seguiam com os olhos, como que tentando completar a paisagem passageira da rua. Por dois anos, caminhando diariamente entre os seres apressados pelo capital, seres estes que, por algum motivo achavam um esforço dizer um simples “bom dia”, um aceno, um olhar. Era só levantar a palma da mão em direção a seu Eliseu para ouvir um cumprimento sincero, de alguém que parece que estava ali para isso. Hoje não mais...
E eu, fiquei sem saber seu grande segredo, sua calmaria, se já havia compreendido o tudo, ou o nada. Voltei ao meu objetivo, ao meu contexto. Ainda não encontrei a saída, mas nunca deixei de procurar.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Luto.



José de Sousa Saramago, 16 de novembro de 1922 - 18 de junho de 2010.

Escritor, poeta, contista, vencedor de vários prêmios, entre eles um Nobel de literatura, comunista, ateu e exemplo.